Carla Veríssimo cria site para se dar a conhecer e ao seu trabalho.

Carla Veríssimo cria site para se dar a conhecer e ao seu trabalho| http://cavverissimo.wix.com/carlaverissimo

18/04/12

Para a avó

AVISO: Este texto não é ficção. Infelizmente é real. Bem real. À família, desejo força para o ler, porque creio que apesar de triste, bem triste, traz também muitas das nossas lembranças, alegrias e momentos. E por isso, passo a publicá-lo aqui: hoje, dia 18 de Abril, dia em que a avó faria anos. Como uma homenagem. Como um desabafo, há muito cá dentro e com muita vontade de sair.
Aos 18 de Abril nasceu também Antero de Quental, escritor e poeta de Ponta Delgada.
Aqui fica a minha escrita e poesia, sentida não só em Ponta Delgada, como em todas as ilhas dos Açores, onde vivo, há 2 anos e 2 meses.
Como poderão ver, o texto que se segue, demorou 3 anos a escrever e não está acabado. Não estará acabado nunca. Começou em Junho de 2009, terminou em Outubro de 2010, e além dos retoque do hoje, continua vivo não só agora em 2012, como sempre.
Aos que o lerem: Força e coragem.
A neta mais velha... de sua avó.

07.06.09:
Se ela soubesse que morreu a 13 de Maio até ficava feliz.
A avó Luísa. Sim, devota como era, com as suas rezas na cozinha, mais pelos outros que por ela, até ficava feliz.
Às vezes sinto que fez de propósito. Que escolheu aquele dia de propósito.
Que será agora da criança que caiu na albarda da burra, enquanto a avó Luísa, distraída, continuava a puxar?
Às vezes acho tão impossível ter caído de uma burra abaixo e no meio do azar, ter a sorte de cair dentro da albarda, de pernas para o ar é certo, mas cair e ficar viva, que me deveria ter certificado da veracidade do episódio com a avó.
Agora acho tão impossível não existir a avó para lhe perguntar tudo isto...
17.06.09:
Num dia falei com ela ao telefone e no outro estava morta.
Num dia ela sabia que a filha iria completar 50 anos nesse sábado, sabia da festa surpresa que as netas estavam a preparar à mãe, sabia do cabrito, do pão, dos queijos, do prato a mais que tinha de pôr na mesa ao jantar do dia seguinte, para a neta que iria dormir lá a casa.
Num dia sabia de tudo isto e no dia seguinte estava morta, e o conhecimento dela parou ali.
O que ela sabia ficou ali, naquele dia. Congelado.
É como se a história pudesse continuar a partir daquele ponto, se ela agora voltasse a ter vida.
Foi ali que ela parou.
Naquelas informações todas. Naquela realidade.
E o que a neta sente, surge agora desconexado.
Ora lembranças do passado, de um passado distante, que já tinha morrido mesmo antes da avó. Muito antes da avó; ora de um presente que não queria ver.
A neta que não consegue chorar e que julga que é isso que as pessoas chamam “ser forte”. Mas será mesmo?
A avó Luísa.
O que é, do que foi a avó Luísa?
O que é da mulher que teve 10 filhos?
Da mulher que lavava roupa à mão?
Da avó que se arreliava quando lhe dizia: Oh avó, se calhar tá grávida do 11º filho!, ao que me respondia: Tá calada, antes que leves um estalo na puta da tromba!, ela que até não era mal criada.
Aliás, era uma boa criada, isso sim! Do avô, dos filhos e dos netos!
Ela que rezava pelo avô, em vez de rezar por ela mesma.
Ela toda bruxas e enguiços e terços e bíblias.
Ela nas suas saias.
Vêm-me em catadupa imagens da sua cara, do corpo, das vestes, do cheiro, das posições, das falas,... voceses isto, voceses aquilo...
E se eu ligar agora para o telemóvel dela, quem vai atender?
Se ela parou naquele dia?
20.07.09:
A avó Luísa não morreu.
A avó Luísa ficou retida lá atrás.
No tempo.
No Monte.
Na Lanchita.
Entre o trabucar de tachos e panelas desde as 6 da manhã até ser noite.
Nos pombos, no horto, na água que ia buscar ao poço.
Essa avó não morreu.
Essa avó está no estendal da roupa, entre molas caídas e ceroulas do avô.
A avó Luísa está la atrás, na casa das loiças, dos lençóis, da roupa das tias, das selas dos cavalos, das arcas,...
A abrir uma cancela, a passar a roupa com o ferro de brasas...
A atravessar a sala enorme, para fazer voltar a mexer o pêndulo, daquele relógio de corda, em que o tempo era outro, tão outro, mas todas as horas tocavam.
Foi em catadupa a notícia triste...
A minha semana de cansaço e angústia, os meus pressentimentos.
Depois o telefonema do meu tio. E eu na inocência de achar que iria dizer não poder ir à festa surpresa da minha mãe. E do outro lado a voz dele entre lágrimas.
Foi a avó... Carla...A Avó...
a avó morreu...
e eu incrédula. E eu a dizer-lhe que estava a gozar comigo. Que só podia estar a gozar. E eu a puxar os meus cabelos com toda a força e a gritar, a gritar.
A gritar e a andar de um lado para o outro, por entre os colegas de trabalho.
Eu a chorar.
Eu numa outra realidade.
Incrédula.
Acima de tudo: INCRÉDULA.
27.09.09:
Eu no “lugar do morto” no meu carro, porque não estava capaz de conduzir.
O meu tio em lágrimas...
31.08.09:
Eu a agarrar nas malas à pressa. As malas que já estavam preparadas para ir de fim-de-semana, mas para festejar os 50 anos da minha mãe. Com toda a família. Com a avó...
Eu a entrar para o carro de um amigo do meu tio.
O meu tio no “lugar do morto”. O amigo a conduzir.
Tudo muito estranho....
muito surreal. SURREAL.
É ISSO.
08.09.09:
Chegámos à Casa Mortuária. Várias pessoas da família... Amigos da família...
O carro funerário...
Tudo para a avó....
Pela minha avó Luísa...
Incrédulo
Inacreditável
Surreal
Estranho
Bizarro...
Entro na sala e o caixão ao fundo...
Não é ela...
Não é a avó..., dizia eu para os meus primos.
10.10.09:
É. É a avó, dizia um deles enquanto me abraçava.
Ele com lágrimas nos olhos. Eu sem conseguir chorar muito...
Atravessei a sala toda. Ao fundo, em frente, o caixão. Não me detive muito tempo a olhar, embora estivesse a um braço de distância dele.
Retive um fato vestido que não gostava nada, que era um fato muito pesado... o tecido era pesado... as rugas do tecido... a cor.... uma espécie de verde que não é seco, não é tropa, simplesmente NÃO É!
Aquele fato pesado para aquela ocasião pesada....
E o corpo dela orientado com a cabeça para a porta de saída, em vez de estar como se fosse virada para as pessoas, para a rua. Não sei se há alguma regra religiosa para aqueles posicionamentos, mas aquela não me agradou... Estava fora do sítio.
Entretanto a senhora da agência funerária pede-me o nome e a idade dos 10 filhos para colocar na Certidão de Óbito.
Começo por dizer o nome da minha mãe e a idade, 50 anos (quando me apercebo que na realidade, naquele dia, a minha mãe ainda só tinha 49... estava a 3 dias de fazer os 50...)
Entretanto, eu e o avô no mesmo carro que a avó.
Nós no banco de trás, e a avó ainda mais atrás, rodeada de flores, muitas flores.
14.04.10:
Não me fazia impressão ir ali dentro. Estranhamente não fazia.
Não me fazia impressão pensar que a avó ia lá atrás, deitada dentro de um caixão. Não fazia.
Nada me fazia impressão porque tudo parecia tão irreal.
Tão estúpido.
Tão absurdo.
Quando começou a escurecer, reparei numa luz lá atrás, junto da avó, e aquilo sim, fez-me impressão. Perguntei se tinha mesmo de ir acesa... deram-me a entender que era em sinal de respeito... mas voltei a insistir e a explicar que aquilo sim, me estava a fazer impressão.
A luz apagou-se. E só voltou a acender-se depois de eu ocupar outro carro, e uma das tias, o meu lugar.
Era já tarde quando chegámos ao destino final. Eu pensava na minha mãe... como estaria devastada...
Ela rodeada de gente a tentar consolá-la, mas ela a soluçar de dor, tristeza e acima de tudo RAIVA.
RAIVA, é o que se sente.
Raiva. Revolta.
E eu, nem a ver a minha mãe naquele estado conseguia chorar.
Eu não chorava.
Eu continuava a achar que aquilo tudo só podia ser brincadeira.
Que alguém estaria a gozar connosco.
(No dia 14.04 um dos meus tios faz anos, o que quer dizer que há 39 anos atrás a avó Luísa estava a dar à luz......)
26.04.10:
Dormimos, e só no dia seguinte, consigo soluçar um choro...
E depois a Missa, a Igreja, e o caixão da avó, com a avó, ali pousado, fechado.
O padre a perguntar quem queria fazer uma leitura e eu a oferecer-me logo.
E sabem, arrependo-me até hoje de não ter interrompido aquela leitura pré-definida para fazer ouvir aos presentes, quem foi a minha avó.
Isso sim, seria uma Missa. Uma última homenagem, se é que há últimas homenagens, pois falar do que uma pessoa fez e foi na vida devia ser feito à própria pessoa, quando ainda está viva.
Arrependo-me de não ter dito como a avó atendia o telefone, com aquele “táaaaaaaaaaaa”, muito prolongado, de como nós saltávamos nas camas, ríamos, falávamos e ela sempre a mandar-nos calar, que não ouvia o que lhe diziam do outro lado da linha!; contar das comidas que fazia, das roupas que lavava, das brasas acesas para o ferro de engomar...
Porque não posso ter outra vez essa avó??
E todos esses tempos no Monte?
Estou a escrever este texto há quase um ano... porque me custa tanto...
Custa-me hoje pensar que há um ano atrás ela não sabia, nós não sabíamos, que em 17 dias ela iria morrer.
Este limite custa muito.
Custa-me esta paragem do tempo. Do conhecimento. Da sensação.
Da vida.
Assim como a infância, as minhas recordações dos tempos no Monte são as melhores da minha vida.
Podíamos ir outra vez buscar água ao poço, podias, avó, andar outra vez com os tachos na mão, entre a casa do forno e a cozinha, podíamos ir outra vez fazer o avio aos sábados, podias outra vez chamar-me oh filha, podia ouvir a tua voz outra vez, … podias outra vez ver as novelas depois do almoço, podias outra vez toda uma vida, cheia de força, coragem e trabalho.
Podia continuar por mais um ano a escrever este texto.
Pensei que no cemitério ia ter coragem para me aproximar do caixão, a minha mãe também equacionou, mas não conseguimos. Alguns dos filhos a beijar a avó pela última vez, mas nós não fomos capazes.
E não julgo que isso seja importante. Porque não era essa a minha avó.
A minha avó ficou parada lá trás... no dia 13 de Maio de 2009.
Ao telefone comigo no dia anterior... do outro lado da linha.
01.06.10:
Texto para sempre inacabado e/ou em construção, porque a avó não terá alguma vez uma letra final.
04.09.10:
E se hoje me apetecesse ligar à minha avó Luísa?
Contar-lhe como estou, o que faço, saber do que faz, onde está...
E não é preciso ligar-lhe porque ela está aqui, aí, em todo o lado...
E questiono-me se hei-de chorar.
E questiono-me se isto deve ser uma questão.
Porque não interessa nada se choro ou não. O que interessa é que hoje me apetecia tanto falar com a minha avó.
Ouvi-la...
Ouvi-la...
Consigo ouvir a voz dela na minha cabeça...
Consigo até imaginar o que falaríamos ao telefone...
Mas isso não me basta.
E basta-me que a avó não esteja aqui, para que o hoje não seja o que me apetecia.
12 e 13.10.10:
Tenho muitas saudades da avó.
O cheiro a terra seca.
O árido das pastagens.
As cercas, os muros, os arames farpados. As vacas, os cavalos, cabras, galinhas, pombos,...
Andar no pasto, no monte, no campo tem disto.
Santa Maria recorda-me os dias quentes do Alentejo, as noites estreladas em frente à porta. Os candeeiros a petróleo, a mesa da cozinha.
A banca onde todos gostávamos de nos sentar. O jantar a meia luz, a avó já cansada das panelas das 6 da manhã, dos tios, do avô, dos netos, da casa do forno,... a dormitar de braço em cima da mesa e cabeça em cima do braço.
Tenho mesmo saudades da minha avó. E então, o que é que faço com isso??
Cresci no campo e agora trabalho no campo. As mais pequenas coisas, neste momento, fazem-me recordar a minha juventude. A avó, o Monte, o dia-a-dia nos meses de Verão.
E não adianta pôr por palavras que em São Jorge, na Graciosa ou no Faial, uma vaca, uma ovelha, uma pastagem, uma cerca, o verde, a terra, as galinhas, me fazem recordar a minha avó.
Isso não se põe por palavras.
Isso sente-se.
Ficou cá dentro. Como ficou a avó. E ficou cá dentro de uma forma que na altura não percebi, e agora está a vir ao de cima.
E agora tenho muitas saudades da minha avó e não sei o que fazer com elas.
Mas se ela me gritasse para lhe ir apanhar a roupa que vai começar a chover, para ir buscar água ao poço, para ir encerrar as galinhas, ou pra lhe abrir o postigo, eu ia a correr, e nem refilava!
O relógio da minha avó parou a 13 de Maio de 2009.
O pêndulo ficou lá atrás, e a roupa vai ficar Para Sempre, por pendurar

18.04.12
A avó Luísa não morreu. Está só fora do sítio. Ficou retida lá atrás.
E se eu hoje fosse ler na Missa da avó, seriam estas palavras que a minha voz faria ecoar, porque a avó ficou cá dentro.

16/04/12

A vida, contada assim à minha sobrinha

Ainda não ouvi o teu primeiro choro e já te quero falar do espernear que terás pela frente.
Ainda nem sei se serás princesa, fada, cinderela, soldadinho, pinóquio ou anão.
Ainda não te conheço e já tenho para ti todos os nomes bonitos do meu mundo: Alice, Olivia, Maria Clara, Amélia, Benedita, Eduarda, Maria Flora, Amália,...
Gil, Francisco, Gustavo, Joaquim, Francisco Gil, Pedro Gil,...

Só daqui a alguns anos poderás entender esta história, ou pelo menos lê-la... já que isto da vida são apenas 3 parágrafos: nascer, crescer e morrer.
Ponto final parágrafo. É mesmo assim. Frio. Curto. arrebatador.

Já as linhas de cada um deles, desses parágrafos, podem ter tantas palavras como as estrelas que há no céu.
E se fizermos brilhar forte cada uma delas, deixaremos certamente o nosso pó no universo.
A tua pele, o teu olhar, a expressão de todos nós, teus antepassados, em ti...
Os risos, os gritos, as birras, os saltos, as fomes, as noites, as falas,... Serão essas as tuas marcas. As páginas do livro que hás-de escrever... das histórias, afinal tão tuas, que afinal nós, poderemos ler.
Fim!... Do 1º capítulo!

Texto escrito a 31.01.2012 e publicado a 16.04.2012, quando soube que afinal serás fada, cinderela e princesa! ;)