Tenho saudades de quando ia para Vairão, logo de manhã cedo, com a Raquel.
Criamos certas rotinas, e de repente elas acabam.
Levantava-me cedo. Saía de casa e andava uns 15 minutos a pé, até chegar a casa dela.
Era assim todas as manhãs.
Ainda me lembro da primeira manhã. Da primeira vez que a vi. Ou melhor, não era a primeira vez. Mas isso só vim a descobrir muito mais tarde.
Ao telefone tratei-a na terceira pessoa, porque achei que era uma “senhora”, alguém mais velho que eu.
Depois descobri nela uma menina! Não por ser, afinal, da minha idade, mas porque a acho mesmo menina. Angélica. E ao mesmo tempo rebelde!
E aí, tratei-a sempre por tu, obviamente.
Ela tratava-me por chavala!
Essa menina fazia-me rir, ouvia músicas super alternativas. Eu pelo menos não as ouvia em mais lado algum que não dentro do Lupo azul em que ela se sentava ao volante.
Aos poucos fui-me partilhando com ela.
Foi durante muito tempo a única junto de quem me sentia 100% à vontade. 100% eu.
- Chavala, queres uma pêra. Foi o Joaquim que trouxe da aldeia.
Sentia que com todos os outros havia sempre uma espécie de barreira.
Aos poucos essa barreira também se foi desvanecendo e consegui partilhar-me com todos aqueles outros. Fui-os descobrindo, conhecendo.
Tenho saudades daqueles 6 meses. Daquele dia-a-dia. Daquelas certas rotinas.
Havia a grávida, como eu lhe chamava. Não por força de expressão, mas por expressão da força que aquele bebé lhe impunha.
Achava muita piada à grávida. Sempre muito carinhosa, sempre sorridente.
Gostava de me meter com ela. Uma vez no campo, passou o dia a comer e a sentar-se para descansar. Eu só me ria. Era mesmo estado de grávida!
(Cê Soares, agora tens aí um Miguelito lindo!)
- Chavala, amanhã às 9 em minha casa.
Havia um Pedro. Havia muitos Pedros.
Um dos que costumava almoçar connosco (o Tarroso. Tínhamos de tratá-los pelos apelidos, senão nunca se sabia de qual falávamos) que dizia sempre algo que nos fazia rir a todos.
Um outro (o Moreira) também era super engraçado. Esse já o conhecia da Faculdade e já sabia que era assim. A risota pegada! O descalabro! Um dia começou a gozar comigo e com a Raquel por sermos do sul e chamarmos coito àquele sítio onde não nos podiam apanhar quando jogávamos à apanhada. No norte, chamavam casa ao coito, e caçadinhas à apanhada!
Em 27 anos de vida foi preciso vir esse Pedro para eu pensar no sentido de chamar coito àquele sítio. Ele dizia fazer mais sentido casa. Eu, continuo a preferir o coito!!
Havia ainda um outro Pedro (havia mais, mas estes três foram os de quem me aproximei mais) – o Ribeiro. No início entrava no laboratório e não me dizia nada. Nem bom-dia, nem boa-tarde. Nada. E eu que sou tão exigente com essa coisa a que chamam “uma questão de educação”.
Ficava possessa.
Chegava a comentar com a Diana (uma amiga). Ela dizia “Esse Mancha Branca é um antipático!”
Eu concordava.
Um dia, comecei a fazer-lhe muitas perguntas (faço sempre muitas perguntas). E foram exactamente para perceber quem eram todos os Pedros lá de Vairão.
Atrás das perguntas dos Pedros vieram muitas mais, e a partir daí acho que ele sentiu não ter hipótese. A partir daí começou a entrar no laboratório e a dizer-me bom-dia, boa-tarde, e até a meter-se comigo.
Com o tempo, passei a considerá-lo simpático!
A Diana continuava incrédula!
Mas eu dizia-lhe: - É verdade. Ele afinal é simpático. Estou-me sempre a rir com ele.
Nunca pensei vir a rir com ele, nas primeiras vezes. As pessoas revelam-se. Temos é de dar-lhes o espaço que necessitam.
É isto a partilha.
Provavelmente todos eles também tiveram impressões a meu respeito que depois mudaram. Tanto do mau para o bom, como do bom para o mau. É mesmo assim. Lugares-comuns.
- O Joaquim está em Lisboa este fim-de-semana.
Havia as Joanas – umas queridas. Ponto. Uma com medo de grilos, imagine-se. Outra com duas gémeas. Não sei o que é melhor!
Havia a Sílvia, com quem também foi gradual a aproximação, e o Congresso de Herpetologia, ajudou. Alguém (já não me lembro se ela) começou a dizer que éramos as “Migueletes” e ela a “Britete”! (devido aos nomes dos nossos orientadores). Foi de rir.
Numa das fotos que tiraram às “Migueletes” ela está em segundo plano, mas está lá! Tinha que estar.
Havia a Catá, como lhe chamava. Era a "Harriete", como se auto-chamava!
Passava o tempo a rir. Parecia que tinha feito uma diabrura qualquer. E eu não podia olhar para ela, que só me dava para rir também.
Assim como a "Britete", também ficou em segundo plano numa das fotos. Em segundo plano, mas lá! Com o seu riso!
Havia a Antigoni, o Miguel (obviamente o Miguel), a Xavier, o Zé Carlos Brito (obviamente o Brito), a Xaninha, o Harris (obviamente o Harris) e tantos, tantos outros.
Estes tantos outros com quem tinha havido uma espécie de barreira. Essa barreira que se foi desvanecendo. Esses tantos com quem me consegui partilhar, que fui descobrindo e conhecendo.
Depois de muita partilha, de muito ouvir falar do Joaquim, um dia fui a casa da Raquel e lá estava ele. O Joaquim. Reconheci-o automaticamente. Lembrava-me dele da Faculdade. Chegou a sentar-se ao meu lado nas aulas de Cristalografia.
Lembrei-me logo dele a sair da Faculdade, junto de uma menina angélica.
Olhei para a Raquel. Ri-me. Afinal eu já a tinha visto antes daquela “primeira vez” no Lupo azul.
A partir desse dia, havia duas Raquéis na minha cabeça. A do Joaquim e a minha. Tentava conjugar as duas, mas nem sempre conseguia. E quando conseguia era estranho.
Hoje olho uma foto do meu primeiro congresso de Herpetologia, e lá está a Raquel, a olhar para mim. A rir. No seu sorriso carinhoso. No seu sorriso de menina.
É essa a minha Raquel.
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